sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O Evangelho de Judas. De traidor a libertador?

A descoberta e tradução do Evangelho de Judas despertou polêmicas sobre o seu papel na história. Teria Jesus pedido a Judas para que o traísse? Qual o significado desta descoberta e da traição de Judas? Qual é o contexto do Evangelho de Judas? Judas deixou de ser traidor para se tornar libertador? Além do Ev. Judas temos fragmentos apócrifos que falam de Judas, sua malévola mulher, que o instigava a roubar, bem como a dura repreensão de Jesus a Judas, após sua morte. Descoberto no Egito, o Evangelho de Judas é do ano 150. A cópia encontrada é do início do século III e início do século IV. O contexto do Evangelho de Judas remete aos gnósticos, grupo que influenciou o cristianismo emergente (120 a 240 E.C.) e se estendeu até o séc. VIII em várias ramificações . No ano 381 da E.C. o Imperador Teodósio I reconheceu oficialmente um único ramo do cristianismo e perseguiu os gnósticos. Os gnósticos viviam de modo coeso e sectário. Gnosis é um substantivo grego que significa “conhecimento”. Segundo o mito gnóstico das origens, um Salvador celestial foi enviado para ‘despertar’ a humanidade gnóstica, para dar-lhe o conhecimento (gnosis) de si mesma e de deus, para libertar as almas do destino e da escravidão do corpo material e ensiná-las a escapar da influência dos malévolos ‘governantes’. Adquirindo conhecimento, a alma escapa e retorna a deus, ou se reencarna em outro corpo. O Evangelho de Judas foi escrito por um grupo de gnósticos que se intitulavam Cainitas, nome derivado de Caim, filho de Adão. Eles tinham Caim e Judas como modelos gnósticos. Eles representavam o lado mal do deus criador. Eles mataram o bem (Abel e Jesus) para que eles pudessem vencer o mal e nos salvar. Os gnósticos cainitas eram considerado um dos grupos mais libertinos da época. Judas é o discípulo predileto no Evangelho de Judas O Evangelho de Judas começa dizendo que se trata do “relato secreto da revelação que falou em conversação com Judas Iscariotes durante uma semana, três dias antes de ter celebrado a Páscoa”. Entre os gnósticos, o mestre revela segredo para os seus discípulos prediletos. Outros apócrifos gnósticos falam que Jesus revelou segredos para Maria Madalena, Tomé, etc. Também nos evangelhos canônicos Jesus revela ou explica questões para os apóstolos em particular. João é considerado o Discípulo Amado. Baseando somente no Evangelho de Judas não podemos dizer que ele era o discípulo predileto. Jesus não aparece em forma humana e ri O Evangelho de Judas fala do ministério de Jesus na terra e afirma que “ele freqüentemente não aparecia para os seus discípulos como ele mesmo, mas era encontrado entre eles como uma criança”. Para os gnósticos o humano, o histórico de Jesus não conta, mas o sublime, a realidade superior de onde ele veio. Apresentar-se como criança significa dizer que ele está aberto e puro para receber o Conhecimento que conduz à salvação e que pode revelar segredos do além e dos fins dos tempos. Na Judéia, Jesus, durante a oração sobre o pão, ri e os discípulos lhe perguntam: “Mestre, por que você está rindo de nossa Oração de Graças? Nós fizemos o que está certo”. Jesus lhes explica que ele ri porque eles rezam para um “deus” diferente do dele. E ele diz ainda mais: “Vocês me conhecem? Na verdade, eu digo a vocês, nenhuma geração das pessoas que estão entre vocês me conhecerá.”. Judas: o discípulo capaz de conhecer Com a atitude de Jesus, os discípulos ficam irritados e começam a blasfemar. Jesus, percebendo que eles não são capazes de “conhecer” o que ele está explicando, pede que alguém dentre eles que seja forte, perfeito o suficiente, se apresente diante da sua face. Neste momento, Judas Iscariotes entra em cena, pois era superior aos outros discípulos. Judas, diz o texto, “era capaz de ficar diante dele, mas não podia olhar em seus olhos, e desviou sua face”. Judas toma a palavra e diz para Jesus: “Eu sei quem você é e de onde veio. Você é do reino imortal de Barbelo. Eu não sou digno de pronunciar o nome de quem te enviou”. Jesus, percebendo a capacidade de conhecer de Judas, o chamou à parte e lhe prometeu revelar os “segredos dos mistérios do reino”. Após esta afirmação a respeito de Judas, há uma longa descrição de uma nova aparição de Jesus e sua conversa com os apóstolos sobre o pensamento gnóstico sobre os imortais, eternidade, gerações. Há também uma narrativa de uma visão do Templo e seus sacerdotes. Jesus diz aos discípulos que eles, os sacerdotes, são como “planta árvores sem fruto em seu nome e de forma vergonhosa. Em Apocalipse de Pedro 79 os bispos e diáconos são chamados de “canais sem água”. Estes relatos revelam o pensamento gnóstico que afirmava que não era necessário hierarquia eclesial para se chegar à salvação. Bastava um caminho pessoal, sem estruturas eclesiásticas e governantes. Segredos revelados por Jesus a Judas O Evangelho de Judas descreve os segredos que Jesus revela a Judas. Seguindo o pensamento gnóstico, Jesus expõe para Judas a condição da raça humana: ela deve morrer para libertar-se do corpo terrestre; precisa conhecer a si mesma e Deus e voltar, libertada, para a sua origem; possui maus governantes. Jesus fala da Adão, Set, Anjos, Cosmos, caos, batizados em seu nome, etc. Eis outras revelações importantes. 1. Judas será amaldiçoado e reinará sobre eles. Judas revela a Jesus uma visão que teve: “Eu vi a mim mesmo enquanto os Doze discípulos me apedrejavam e me perseguiam”. Judas é colocado em oposição aos outros discípulos. Ele pergunta a Jesus sobre o seu próprio destino e porque ele o havia escolhido dentre aquela geração. Jesus lhe diz “você tornar-se-á o décimo terceiro, será amaldiçoado por gerações, mas reinará sobre eles. Judas vai superar os outros apóstolos porque ele vai cumprir o papel de libertar Cristo do corpo de Jesus. 2. Judas sacrifique o homem que me reveste. Jesus justifica seu pedido a Judas, dizendo que ele está bem preparado, sua ira tinha sido aplacado, a sua estrela já tinha brilhado o suficiente. Para os gnósticos, cada ser humano está revestido de um “homem” que dever ser libertado, de modo que possamos voltar às raízes de onde viemos. Cristo estaria aprisionado em um corpo. Judas teria que cumprir a missão sublime de libertá-lo, de modo que a centelha divina presente em Jesus pudesse brilhar e, assim, ele voltar ao Plemora (realidade superior). O mito gnóstico da criação diz que Cristo é um ser metafísico que desce para unir-se a Jesus de Nazaré. Jesus é a encarnação de Cristo preexistente. O ato de Judas perfeitamente compreensível na visão gnóstica. Ele não estaria “matando” o Cristo, mas Jesus. Considerar esta revelação, que não se firmou ao longo da tradição cristã, como verdadeira, é negar todo a historicidade do mistério de Jesus de Nazaré no meio de nós e libertação que ele nos veio trazer. Estamos, na verdade, diante de uma ficção. E aí temos que concordar com Santo Irineu. 3. Judas é a estrela que mostra o caminho. Jesus diz a Judas: “Levanta os olhos, vê a nuvem e a luz dentro dela e as estrelas ao redor. A estrela que mostra o caminho é a tua estrela”, isto é, liberte-me para realizar a salvação. Em Jo 13, 26-30, Jesus declara que um dos 12 o trairia, entregando um pedaço umedecido no molho e lhe diz: “Faze depressa o que estás fazendo”. Texto também questionador. Haveria necessidade de Jesus indicar o traidor? A história de Judas como estrela que mostra o caminho termina dizendo que ele entra numa nuvem luminosa. O que ocorre depois não sabemos porque o texto original está destruído. Menciona-se uma voz que sai da nuvem e alguns a ouvem, sem na verdade, relatar o seu conteúdo. O Evangelho de Judas termina, após uma lacuna no texto, dizendo que os escribas e o sumo sacerdote haviam se preparado para prender Jesus durante o momento de sua oração. Eles se encontram com Judas e lhe perguntam o porquê de ele estar ali e afirmam que ele, Judas, era discípulo de Jesus. Judas responde às perguntas deles, recebe dinheiro deles e entrega Jesus. Conclusão No Evangelho de Judas, Judas cumpre o papel de libertar Jesus, mas não de traí-lo. Jesus pede para Judas traí-lo. Jesus decide. Isto é fatalismo? Judas não teve a liberdade para decidir. Aceitando este curso da história, teremos aceitar a morte de Jesus também como fatalismo, ele tinha que morrer na cruz. Não. Jesus não teria que morrer na cruz. A sua morte foi conseqüência de sua atitude revolucionária e libertadora. A descoberta do Evangelho de Judas chama o cristianismo a rediscutir o papel de Judas e nada mais. O documento encontrado pode ser verdadeiro, mas não o seu pensamento. Obras de ficção também eram escritas naquela época. E é dentro de seu contexto é que elas precisam ser compreendidas. No entanto, perguntas permanecem: Por que Judas teve que carregar uma culpa tão pesada? Por que os evangelhos canônicos apresentam Judas como traidor? Se Jesus era tão conhecido, por que, então, ele precisaria de um delator? Jesus não seria tão conhecido do império romano? Ou todo grande personagem precisa de um grande traidor? O nome Judas nos remete aos Judeus. Judas teria sido colocado na lista dos apóstolos para dizer que os judeus traíram Jesus. Judas foi criado para estigmatizá-los como traidores. Havia no início do cristianismo várias correntes de pensamento. Uma se tornou a vencedora nas disputas teológicas. O Evangelho de Judas faz parte de uma das correntes que não foi considerada verdadeira. Queimar Judas em nossos dias não significar instigar a violência. Violência gera violência. Um Judas pode gerar outros Judas. Judas somos todos nós, quando traímos o projeto do evangelho, a vida na sua essência. O Jesus histórico que pregou a libertação do ser humano de toda e qualquer vil opressão não poderia ter pedido para ser traído. O Evangelho de Judas pode nos ajudar a compreender ou trazer mais luzes para o estudo do gnosticismo, mas não mudar o curso da história cristã. O Judas libertador não condiz com a fé, tampouco precisa ser tão traidor.
Frei Jacir de Freitas Faria, OFM é Mestre em Ciências Bíblicas, Professor e Escritor,Pesquisador e autor de livros sobre os Evangelhos Apócrifos.

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